Olho para ele á minha frente,
sentado no sofá, quase ausente do que o rodeia, direccionado para a TV que na
mesa ao canto lhe dá algum sinal do mundo exterior, crendo eu que a mensagem já
não passa na íntegra. 85 Anos de idade, formatados e desgastados em infância
muito complicada, irmãos e irmãs, Mãe dominadora da prole numerosa, Pai
prematuramente desaparecido em tempos de guerra e racionamentos, o velho Lobo
Mar aprendeu cedo os riscos e custos de uma actividade ligada á Pesca da sardinha,
indústria importante dos inícios do século XX, trabalhou como Moço dizia ele e
trepando na hierarquia dos Pescadores, foi para as Traineiras, conhecendo como
poucos, todos os artifícios deste tipo de Pesca. Letrado com a quarta classe da
Primária, tirou a carta de Mestre para poder comandar uma Traineira e
respectiva tripulação.
Por muitos anos quase diariamente,
navegou nos mares portugueses á caça da Sardinha, espécie muito procurada para
o destino final das fábricas de conserva que enxameavam a zona Sul da cidade de
Matosinhos. Foram tempos de muita actividade que este velho Lobo do Mar,
desempenhou com muita dedicação e feitio forte e irrascível para com quem na
“Companha”, se não portasse bem!
Falava amiúde do grande
naufrágio a que assistiu na Praia de Matosinhos, na sequência de uma grande
tempestade, que apanhou a frota pesqueira das traineiras na vinda de mais uma
noite de labuta e que deixou um rasto de tragédia e mais viúvas desamparadas,
nas comunidades pesqueiras de Matosinhos, Póvoa, Vila do Conde...
Na sequência da revolução do
25 de Abril e primórdios da entrada de Portugal para a CEE, as frotas de pesca
da sardinha, sofreram uma redução brutal e ao lento definhamento da Indústria
Pesqueira e Conserveira, sobrando nos tempos de hoje um número reduzido de embarcações
e gente do mar que as compõem.
Retirado aos 55 anos de idade
como manda a Lei para estas profissões de desgaste rápido, o Mestre, não mais conseguiu manter uma actividade que o ocupasse, para não perder as suas
capacidades físicas e intelectuais, e a pouco e pouco, tal como a sua indústria
em que trabalhou toda a sua vida, ele foi definhando lentamente, até ao momento
que o estou agora a fitar. Debilitada a saúde, física ainda resistindo, numa
teimosia obstinada tal como quando interpelava a sua tripulação, em termos intelectuais
foi-se apagando de modo lento, numa “agonia”, que mexe comigo, um afastamento
que eu sinto de modo especial. A Medicina ainda está com muitas incapacidades
para lidar com estas andanças da idade avançada...um sentimento de impotência
perpassa pelos que o rodeiam, a Mulher de toda uma vida, que pacientemente lhe
aturou sempre os seus maus humores e agora vai circulando quase em silêncio
provendo toda a logística de que ele necessita para o seu dia-a-dia, as filhas
tentando com as suas visitas e palavras elaborar uma comunicação cada vez mais difícil e esparsa.
O Homem com Ser Humano devia
ter um prazo de Validade, em condições ótimas de funcionamento como as Máquinas
e só depois desse prazo é que deveria ser desligada. Mas nós sabemos que isso é
utópico, portanto temos de nos concentrar naquilo em que podemos ajudar,
colaborar, para que esta travessia final se faça em condições de alguma
dignidade e bem-estar!
Não é por acaso que nos dias
de hoje se fala tanto nos Lares da Terceira Idade, do acolhimento e apoio aos
mais Idosos. Não cair na asneira de os entregar nesses espaços como mercadorias
sem prazo de validade, tentando até ao último esforço possível, que a família
esteja directamente envolvida, embora com grandes sacrifícios. Mas tem de ser
desta maneira, senão é como uma condenação á morte, muitas vezes com requintes
de indiferença, inenarráveis.
Este velho Lobo do Mar não o
merece, nem todos os outros que um pouco por todo o lado, vão vencendo
teimosamente, um dia de cada vez, na fuga ao nosso destino impossível de reverter…
PS: Este texto escrevi-o um ano antes da
morte de ambos os meus Sogros, nunca pensando enquanto o fazia que final desta
História de Vida surgisse tão abruptamente! Em setembro de 2014 no dia 02, a
minha Sogra ao final da tarde falou com a sua filha, minha Esposa sobre
assuntos do dia, e sem que nada o fizesse adivinhar horas depois teve um grave
derrame cerebral que a levou de emergência ao Hospital S. João no Porto e nós
por perto recebemos do médico que a assistiu o desfecho impensável da notícia
da sua morte! Nesse mesmo mês de setembro, agora nos últimos dias, o meu sogro
estando naquela situação de “ausente” do nosso mundo, e sem nunca lhe termos
dito nada sobre o que se tinha passado, como que soube que lhe faltava algo que
o tinha acompanhado ao longo de quase toda a sua Vida, a sua companheira e
Esposa dedicada e “apagou-se” de vez, indo deste modo ir juntar-se a Ela, como
num final digno do mais célebre filme desses que vemos no cinema e Tvs…
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